quinta-feira, 18 de novembro de 2010

120 Anos de Mestre Pastinha

O ano de 2008 marcou os 120 anos de abolição inconclusa da escravidão da população negra no Brasil. Fomos agraciados, pela imprensa televisiva e impressa, além da rede eletrônica, com a morte, pelo Estado brasileiro, de três jovens negros do Morro da Providência no Rio de Janeiro: Wellington Gonzaga Costa, Davi Florêncio da Silva e Marcos Paulo da Silva.

O Morro da Providência, no século XIX, mais precisamente em 1890, de certa forma aparece no capítulo XIII do Código Penal do Brasil. O capítulo XIII é intitulado: “Dos vadios e capoeiras”. Neste capítulo a capoeira criminalizada está vinculada às Maltas. Citando o código:

“Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil
(Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890)
Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas
exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal;
Pena -- de prisão celular por dois a seis meses.
A penalidade é a do art. 96.
Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer
o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá
a pena em dôbro.
Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo,
a pena do art. 400.
Parágrafo único. Se fôr estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.
Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem
perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal,
ultrajar o pudor público e particular, perturbar
a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública
ou for encontrado com armas,
incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes.”

Segundo SOARES (Revista Nossa História, Ano-1 número 5, 2004) o atual Morro da Providência era, no século XIX, chamado de Morro do Livramento e era uma das freguesias de uma das Maltas do Rio de Janeiro, a Malta Guaiamun. As Maltas compartilhavam o espaço físico e político do Rio de Janeiro juntamente com o Estado. Ainda, segundo o autor, as Maltas poderiam ser consideradas como ensaios do crime organizado com o qual convivemos no Brasil do século XXI.
“Crime Organizado”?

Aqui cabe um pedido de licença poética a Mano Brown (Racionais MC) para citá-lo. Quando da sua ida ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 2007, Mano Brown convida a todos nós para uma reflexão sobre a afirmação por ele emitida de que somos todos criminosos por aceitarmos o Brasil como ele é, ou seja, com as suas desigualdades sociais e raciais.

Mas não é que o Brasil da igualdade constitucional do século XXI reserva para os jovens negros do Morro da Providência, pra ficar nesse território, o mesmo destino que reservava para os jovens pertencentes às Maltas no século XIX. Ou seja, morte no máximo aos 24 anos de idade!

Como escrevemos os séculos em algarismos romanos podemos perceber que os símbolos para o século XIX e para o XXI nos possibilitam uma pequena mexida e o que pareceria ser um avanço, o século XXI, na verdade pode significar uma quase imobilidade social, século XIX, da população negra no Brasil. Aqui para não nos afogarmos em números é sempre bom citar os dados estatísticos de órgãos como IBGE e IPEA, por exemplo, sobre as desigualdades em relação à população afro-descendente.
A capoeira em julho de 2008 foi transformada pelo IPHAN, em Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. Obviamente que o Brasil não poderia patrimoniar a capoeira como AFRO-brasileira porque assim estaria patrimoniando a ascendência africana desse jogo/luta/dança.

Gilberto Gil em uma das suas canções diz que: “...quando os povos da África chegaram aqui, não tinham liberdade de religião, adotaram o Senhor do Bonfim tanto resistência quanto rendição..” E foi assim que a cultura afro-brasileira foi se resistindo e se rendendo, até que uma de suas mais belas manifestações, descriminalizada na era de GetúlioVargas, chegou ao status de Patrimônio Imaterial sem o seu hífen umbilical africano.

Mas por isso a capoeira perdeu a sua matriz africana?

Uma resposta possível é o não. Porque se lembrarmos de Mestre Pastinha (05/04/1889 – 13/11/1981) vamos lembrar que após a descriminilização da capoeira, na era Vargas, tivemos uma espécie de duplicação da mesma: 1) a capoeira Regional baiana, criada por Mestre Bimba, que provocou o encantamento do Estado (Getúlio Vargas) com o crime (Capoeira) e que inovando na rendição deu volta ao mundo nas voltas que o mundo dá. Propiciando ao Brasil mais um “orgulho” de apropriação quase indébita, pela via do turismo, para apresentar a capoeira brasileira ao exterior e ao nosso interior. A capoeira tem hoje a possibilidade de se tornar, pelo bem e pelo mal, um esporte olímpico; e 2) a capoeira Angola, difundida por Mestre Pastinha, que manteve a tradição do N’Golo africano mantendo os elementos jogo-dança-luta inseparáveis.

A capoeira foi defendida pelo ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil como a linguagem da paz no mundo como apresentada no Documentário Capoeira Paz no Mundo. Este documentário presta uma homenagem ao diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto num atentado terrorista no dia 19 de agosto de 2003, em Bagdá, na sede local da Organização das Nações Unidas (ONU).
O vídeo apresenta o ato em memória ao embaixador, promovido no Victoria Hall Theatre, em Genebra, um ano após a sua morte, em 2004, e que destacou a importância da Capoeira ser apoiada por uma política pública específica.Além de ser uma possibilidade real de linguagem da paz mundial (www.cultura.gov.br).

No próximo mês de abril que se avizinha em 2009, mais precisamente no dia 05, “Seu” Pastinha - como ainda lhe chama o seu discípulo mais dedicado e o capoeira mais velho do mundo, com 91 anos, um grande Griot, Mestre João Pequeno (Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Uberlândia em 2003 e da Universidade Federal da Bahia em 2008; Comendador (Ordem do Mérito Cultural) da Cultura brasileira em 2003) – completaria 120 anos.
Apesar do Mestre Pastinha também ter sido tornado Comendador em 2005, já fazia um bom tempo que ele havia morrido, mas a presença dele no seu discípulo traz a marca forte da tradição africanamente brasileira que se perpetua através dos seus ensinamentos. Então, é assim, o IPHAN sumiu com o afro e a capoeira se rendeu ao Patrimônio Brasileiro nos 120 anos de abolição inconclusa da população negra e Mestre Pastinha, nos seus 120 anos, in memorian, mantém viva, através do Mestre João Pequeno de Pastinha, a memória africana da capoeira Angola. Mantendo firme o propósito de resistência negra no Brasil. Afinal foi assim que Barack Obama nos seus primeiros atos de presidente negro americano fechou Guantánamo, redirecionou fundos estatais para entidades que defendem o aborto etc. Foi assim também que os Estados Unidos foram os primeiros no mundo a outorgar um diploma de Doutor Honoris Causa a um mestre de capoeira. O diploma foi outorgado ao Mestre João Grande, também discípulo de Pastinha, radicado há mais de 20 anos em Nova York recebeu o diploma pela Universidade de Upsala em Nova Jersey em 1995. E a capoeira de Pastinha continua dando volta ao mundo.

Yê...viva Pastinha camará!

27/01/2009 ás 12:13:20 por :
Fonte: Guimes Rodrigues Filho

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A ética na Capoeira - Por Mestre Decânio

Mestre Pastinha deixou traçado nos seus manuscritos o roteiro do código de conduta (ética) dos capoeiristas de todas as categoria (mestres, alunos e graduados).
As grandes preocupações do Venerando Mestre sempre foram o futuro da capoeira e os capoeiristas do futuro.
Talvez antevendo a transformação da capoeira-jogo num desporto pugilístico, em detrimento dos seus aspectos educacionais e lúdicos.
O abandono do ritmo ijexá, majestoso, solene, gerador de movimentos elegantes e pacíficos, pelos toques rápidos e de caráter belicoso, é a base sobre a qual vem se desenvolvendo uma capoeira, mais preocupada em "soltar os
golpes" que em se esquivar do movimentos de potencial agressivo, característica predominante entre os capoeiristas do passado aparentemente invisíveis e intangíveis como o vento (daí a lenda do desaparecimento sob forma de besouro,
bananeira ou de simplesmente deixarem de ser vistos nos momentos de perigo) .
A influência da violência cada vez maior da sociedade moderna vem desviando a atenção dos verdadeiros fundamentos da capoeira, tornando-a em mais um fator de violência, sob o falso manto de defesa pessoal e de arte marcial, mero pugilato executado sob um fundo musica de caráter belicoso.
Mister se faz o retorno às origens, diria Frede Abreu, lembrando as palavras singelas do nosso Mestre, no seu dialeto afro-baiano, um verdadeiro código de ética.
Seus conselho, guardados e obedecidos, certamente tornariam desnecessária uma regulamentação ou codificação extensa e prolixa. "Os mestre não pode ensinar com discortez nem de modo àgressivo, não . devemos procurar ficar isolados por que nada podemos fazer sem amôr ao esporte."
Manuscritos e Desenhos de Mestre Pastinha (pág.7a, linhas 15-19) O egoismo, a agressividade, a deslealdade, o orgulho, a vaidade, os interesses mercenários, levam ao isolamente - reverso da esportividade. "O bom capoeirista nunca se exalta procura sempre estar calmo para poder reflitir com percisão e acerto; não discute com seus camaradas ou alunos, não touma o jogo sem ser sua vez; para não aborrecer os companheiros e dai surgir uma rixa; ensinar aos seus alunos -sem procurar fazer exibição de modo agresivo nem apresentar-se de modo discortez..."
Manuscritos e Desenhos de Mestre Pastinha (pág.7a, linhas 19-23)