quinta-feira, 27 de março de 2008

Capoeira Angola e Educação: o legado de Mestre Pastinha

“Eu, tornei-me apto para cumprir a missão do que foi investido por Deus, eu compreendi que deve ter-se convicção de combater o mal na capoeira, era e é uma necessidade maior do que conservar a vida: tudo que aprendi está na minha alma”[1].
Mestre Vicente Ferreira Pastinha
Paulo Andrade Magalhães Filho[*]

Os ensinamentos dos mestres de capoeira angola se inserem num modelo educativo característico da cultura popular de matriz africana, onde a adesão a um grupo representa a incorporação de valores ancestrais e o envolvimento na construção de trincheiras simbólicas de resistência afro-brasileira ao processo de homogeneização ocidentalizante promovido pela indústria cultural. A vivência ritual do jogo da capoeira angola, longe de apresentar apenas o domínio de uma técnica de equilíbrio, resistência, flexibilidade e domínio corporal, possibilita uma inserção numa cosmovisão primitiva, que em cada volta ao mundo traz mais lições e reflexões sobre a grande roda da vida.
O Educador da Capoeira Angola
Reverenciado pela maioria dos capoeiristas como o maior guardião da capoeira angola, Mestre Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981) foi o protagonista de um importante processo de transformação da capoeira. A criação da “luta regional baiana” por Mestre Bimba (Manuel dos Reis Machado) na década de 30 permitiu a legalização da capoeira, em um período marcado pelo nacionalismo varguista e pela articulação sócio/política/cultural representada pelo 2º Congresso Afro-Brasileiro. Os mais-velhos da capoeiragem tradicional baiana, entretanto, como reação à “invenção da tradição” (no dizer de Hobsbawm) da capoeira regional, vista como violenta, ocidentalizante e descaracterizada, respaldam Mestre Pastinha como guardião do patrimônio cultural afro-brasileiro cristalizado na capoeira angola. Apesar de Mestre Bimba ter sido o primeiro a fundar oficialmente uma academia de capoeira (1937), Mestre Pastinha foi o primeiro a fundar uma escola de capoeira (Centro Esportivo de Capoeira Angola, 1941), a pensar na capoeira como um instrumento pedagógico, de alto teor filosófico, e é isso que transparece em seus manuscritos. Sua escolha pela comunidade da capoeira tradicional, que resistia à proliferação da capoeira moderna, da moda, a luta regional baiana, não foi apenas pelo seu conhecimento técnico e domínio corporal. Como Mestre Pastinha conta, ele estava afastado há quase 30 anos da prática sistemática e cotidiana da capoeiragem. A sua escolha para “mestrar” a capoeira tradicional baiana, que passou então a ser chamada de capoeira angola, foi pelo seu grau de mestria, pelo seu alto conhecimento espiritual e filosófico, pelo seu caráter de educador. E é assim que ele mesmo se define: “É o educador da capoeira tipo Angola originado pelos negros da velha África”[2].
Analisando transmissão de conhecimento na religiosidade africana, Juana Elbein afirma: “O conhecimento e a tradição não são armazenados, congelados nas escritas e nos arquivos, mas revividos e realimentados permanentemente. Os arquivos são vivos, são cadeias cujos elos são os indivíduos mais sábios de cada geração. Trata-se de uma sabedoria iniciática.”[3]
Tradição vem do latim traditio, do verbo tradire, que significa entregar, transmitir, passar adiante. E é através da transmissão oral, de geração em geração, que se perpetua a capoeira angola pastiniana, não em referência a uma história recente criada na Ladeira do Pelourinho n° 19, mas a uma sistematização de saberes antigos, e a um recorte nesses saberes, com o intuito justamente de preservá-los. Haviam na cidade de Salvador diferentes formações de bateria, e diferentes pensamentos sobre a capoeira tradicional baiana. A fundação do CECA visou à perpetuação de uma dessas linhas, ancorado no saber dos mais velhos, representados pelo grupo do Gengibirra. Foi um momento de tensão entre tradição e ruptura, e nas palavras de Gerd Borheim, “...tradição e ruptura se espelham reciprocamente, e a dialética dos dois termos esclarece a quanto andamos nessa grande esquina que é a história do nosso tempo.”[4]
Das ruas para a escola
Até então, o ensino da capoeira era feito por oitiva, por observação, em lugares públicos e muitas vezes sob a influência do álcool. Mestre Waldemar da Paixão (que mantinha em seu barracão uma das rodas mais famosas de Salvador) conta como começou a aprender capoeira, em 1936: “Ele vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos réis de vinho tinto, aquele copo branco de alça, ele tomava e dizia: ‘pegue na boca de minha calça!’ Eu levava pra pegar na boca da calça dele e ele virava aquela cambalhota desgraçada e já cobria o rabo de arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: ‘não levante não, lá vai outro!’ Os alunos deles jogavam com a gente como que a gente já era bom.”[5]
Nos “Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha”, uma edição dos velhos cadernos do Mestre publicados por Dr. Ângelo Decânio, Mestre Pastinha faz uma advertência explícita contra o uso do álcool: “Temos músicas, cantos e jogos ginásticos que devemos velar, que não introduza o uso do álcool em suas cabeças: porque em sua liberdade é um bem que não deve perder o teu sangue”[6]. Também em seu livro “Capoeira Angola”, de 1964, adverte em uma chula (louvação): “Ê, para de beber, camarada.”[7]
Ao fundar uma linha de sucessão discipular que se articula em torno da escola de capoeira angola como local privilegiado para a transmissão de ensinamentos ancestrais, calcados na oralidade, Mestre Pastinha busca um afastamento do universo das ruas e dos bares, comumente associados à valentia e à violência.
“Envolvidos em desordens públicas em conflitos nas ruas da Cidade do Salvador, empunhando suas facas e navalhas, eram os capoeiras baianos das três primeiras décadas republicanas os notórios valentes”[8], afirma Josivaldo Pires (contramestre Bel). Nestes ambientes de boemia e marginalidade, capoeiras famosos como Pedro Mineiro, Pedro Porreta, Chico Três Pedaços, Besouro Mangangá, Salomé e muitos outros se envolviam em constantes conflitos com a lei, não raro espancando e botando pra correr os policiais encarregados de enquadrá-los. Mestre Pastinha se refere a eles, em seu livro: “O número de capoeiras que ganharam fama eleva-se a dezenas. Alguns, cujos nomes aqui se encontram e que, por razões óbvias deixo sem destaque, foram, em seu tempo, motivos de terror. Suas histórias, por muitos homens de idade avançadas lembradas, devem estar registradas nos arquivos policiais. Eram indivíduos de mau caráter que se valiam da Capoeira para dar vazão ao instinto agressivo”[9].
A “luta regional baiana”, posteriormente conhecida como “capoeira regional”, hoje hegemônica nas academias de ginástica, espetáculos turísticos e meios de comunicação de massa, foi criada em um contexto de lutas de ringue, de desafios que Mestre Bimba fazia a lutadores de outros esportes. Sendo assim, também mereceu críticas do velho Mestre, por mostrar-se em muitos aspectos violenta:
“Eu como um velho capoeirista, sintia-me mal com o rumo que a capoeira se destinava, não mais falavam em capoeira Angola: só regional, os mestres já não eram famosos, aniavam so os dias de domingos, de qualquer forma que desejavam, porem sem corrigirem os seus erros de estarem subjulgado pelo caprichos da regional(...) Hoje vejo reduzido, os capoeirista perdeiram suas forças de vontade, não procuram o fundamento, só querem aprender a propria violencia.”[10]

Ensinamentos do Mestre
Mais do que uma mera prática corporal, Mestre Pastinha concebe a capoeira como um caminho para a perfeição, para o fim dos erros, um instrumento para o aperfeiçoamento do ser humano:
“Eu sempre tive em mente que a capoeira precisava de um generoso instrutor, com a presencia minha, apontei o destino de levar ao futuro assumir deversa atitude Pelo amor ao esporte, e a luta constitui caminho para a divina realização e recebeu o nome de Centro Esportivo de Capoeira Angola como patrimônio sagrado; a movimentação do qual preparam o caminho da perfeição.”[11]
Em uma folha datilografada em anexo aos Manuscritos, um esclarecimento: “Pastinha tem uma academia de capoeira ANGOLA, uma das mais conhecidas em Salvador-Bahia, onde, pratica em primeiro plano, a FÍSICA; em segundo plano, a practica contra a filosofia de erros, em resumo é isso que se chama de Capoeira.”[12]
Em relação ao processo de aprendizagem da capoeira, Mestre Pastinha aponta para a necessidade de um ensino que realmente eduque os discípulos, com disciplina e esclarecimento, embora pressuponha segredos e mistérios não entregues “de bandeja”:
“Todos mestres deve ter conhecimento das regras, e maior número não tem conhecimento. Eu conheço mestres que sabe tanto quanto eu, mais não ensina, todo mundo sabe que o gato ensinou a onça, e o que ia acontecendo?”[13]
A história do “pulo do gato” (um movimento de capoeira, segundo alguns; infelizmente não nos foi possível encontrar quem o ensinasse) é corrente entre os capoeiristas. Dizem que a onça procurou o gato e propôs que fossem amigos dali em diante, e que ele lhe ensinasse seus pulos e manhas, com o que o gato concordou. Depois de aprender “tudo”, entretanto, a onça mudou de idéia e atacou o gato, crente de que teria ali o seu jantar. O gato então deu um pulo que ela nunca tinha visto, pondo-se em um lugar a salvo de ataques. A onça então replicou: “Compadre, este pulo você não me ensinou”. Ao que ele respondeu: “Tá vendo se eu tivesse ensinado, onde estaria agora?”.
“Os capoeiristas do tempo passado tem manhas, jogo no corpo; os mestres do passado estão aí, lhe acompanhando com observação, e não ver regras, porquê?! É que os mestres só ensina jogar, e não dá esplicação: e a capoeira vem amofinando-se quando no passado ela era violenta, muitos mestres africanos e outros nos chamavam atenção,quando não estava no ritimo, esplicava com decência e dava-nos educação dentro do esporte da capoeira, esta é a razão que todos que vieram do passado tem jogo de corpo e ritimo. Os mestres rezerva segredos, mais não nega a esplicação”[14]
Aqui Mestre Pastinha mostra mais do que nunca a atualidade de suas reflexões. O discurso da capoeira esporte, cada vez mais adotado por adeptos da capoeira regional, que introduzem a capoeira nas academias de ginástica e musculação, pretendem levá-la para as escolas sob o olhar e resguardo da Educação Física e sonham disputá-la nas Olimpíadas, está vivendo momentos propícios às articulações institucionais. O sistema CREF/CONFEF apresenta os frutos deste plantio: o projeto de imposição da obrigatoriedade do diploma de Educação Física para o ensino de capoeira. Muitos dos modernos grupos de capoeira têm formado mestres cada vez mais novos, exímios atletas acrobatas que privilegiam o trabalho corporal em detrimento do educativo, se impondo à força e agindo como os líderes imaturos contra os quais Jesus Cristo adverte: “Pode porventura um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?”[15]
“O bom capoeirista espera, o ambicioso agita-se e percipita-se, o famoso o povo lhe diz...” “O bom capoeirista nunca se exalta, procura sempre estar calmo para poder reflitir com percisão e acerto; não discute com seus camaradas ou alunos, não toma jogo sem ser sua vez, para não aborrecer os companheiros e dai surgir uma rixa; ensinar aos alunos sem procurar fazer exibição de modo agressivo, e nem apresentar-se de modo discortez sem amor a nossa causa que é a causa da moralisação e aperfeiçoamento desta luta tão bela quanto útil à nossa educação...”[16]
Mestre Pastinha tem uma preocupação com a serenidade, a pazciência.... O comportamento que se adquire com o ritual da roda de capoeira angola é o comportamento para o jogo da vida, e pressupõe um caminhar sempre para a frente, como explica o Mestre:.
“Nunca perder de vista de que é a partícula da força inteligente, pensam na responsabilidades do bem, ou mau, devemos conhecer a ação do pensamento, é o poder da vontade. Venho, desde o passado para evoluir, crecer, progridir, andar para frente, arrancando dos pés dos escravos da ignorância, todos capoeirista está dormindo, até hoje continua dormindo, corrigem-se e veja a luz da verdade...” [17]
Mais adiante o Mestre aponta o seu caminho de libertação: “já libertou-se a capoeira das garras da ignorância, é o comprimento do nosso dever”[18]
Mestre Pastinha concebe a capoeira angola como um “caminho para a divina realização”, um modo de tirar os discípulos do erro, e como bom devoto, explica o dever:
“Cumprir o dever é ser honesto de si mesmo: é respeitar-se a si próprio, é agir com consciência esclarecida; todo o dever cumprido representa o resgate de uma obrigação; um impulso para frente no sentido da evolução” [19]

Oralidade, Academia e Educação
Estudar o pensamento de Mestre Pastinha é penetrar no seio de uma elaborada visão de mundo a fundamentar a fundação de uma escola, a primeira escola de capoeira angola da Bahia e do mundo. Ao pressupor questões de ordem ética e moral como cumprimento do dever, humildade e paciência como necessárias dentro do processo de aprendizagem da capoeira, ele enxerga a capoeira angola não apenas como um poderoso instrumento educativo, a trabalhar corpo e mente, mas em um caminho para a auto-realização e para a evolução espiritual.
Uma questão que tem despertado preocupação entre os mestres, pesquisadores e militantes da cultura popular afro-brasileira é em que medida o registro impresso de uma sabedoria que se transmite tradicionalmente com base na oralidade pode ou não vir a constituir uma deturpação, um falseamento destes ensinamentos. O processo de apropriação deste conhecimento tradicional pelos pesquisadores acadêmicos, detentores do discurso científico autorizado, os transforma por vezes em autoridades constituídas nestes assuntos, que têm mais acesso ao mercado (através de palestras, cursos e publicações) que os verdadeiros guardiões do nosso patrimônio cultural. Muitos mestres são reverenciados mas têm dificuldades concretas de sobrevivência no dia a dia, como Mestre Pastinha já alertava em 1980, seu penúltimo ano de vida: “A capoeira de nada precisa, quem precisa sou eu”[20]. A articulação de projetos como o que estabelece aposentadoria para os antigos mestres da cultura popular (bandeira de luta da ABCA – Associação Brasileira de Capoeira Angola) e outros que tragam benefícios e retornos concretos para os mestres e suas comunidades de origem deve ser um compromisso político para os que trabalham com cultura, educação e cidadania.
Em um momento que se discute a produção de materiais didáticos e paradidáticos para o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, em atendimento à Lei 10.639/03, torna-se fundamental trazer à luz as (poucas) produções dos verdadeiros mestres da cultura popular, ainda não filtradas por um olhar acadêmico. Neste sentido, concepções e pensamentos do Mestre Pastinha devem servir de referência para o ensino e aprendizagem da capoeira nas escolas, dentro de uma ótica afro-brasileira, tradicional, calcada na memória e na oralidade.


Referências:
[*] Jornalista pela UFMG, especializando em Educação e Relações Étnico-Raciais pela UESC, aluno especial do CEAO - UFBA. Membro do Conselho Editorial das revistas “Nós e Vós” e “Angoleiro é o que Eu Sou” - paulobabh@yahoo.com.br.
[1] Mestre Pastinha, Manuscritos e Desenhos de Mestre Pastinha. Salvador: Coleção São Salomão, pág 97a
[2] Idem, pág 90a
[3] Elbein, Joana. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1977
[4] Bornheim, Gerd. In Cultura Brasileira: Tradição/Contradição. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, pág 29.
[5] Abreu, Frede. O Barracão do mestre Waldemar. Salvador: Zarabatana, 2003, pág 16
[6] Mestre Pastinha, Op. Cit, pág 91b
[7] Pastinha, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. 3ª edição.Salvador: FCEB, 1988, pág 38
[8] Oliveira, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na Cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005, pág 133
[9] Idem, pág 23.
[10] Mestre Pastinha, Op. Cit, pág 90b
[11] Idem, pág 5b
[12] Idem, pág 132
[13] Idem, pág 10a
[14] Idem, pág 9a
[15] Bíblia Sagrada, Lucas 6- 39
[16] Mestre Pastinha, Op. Cit, pág 7a
[17] Idem, pág 83a
[18] Idem, 71b
[19] Idem, pág 73b
[20] Abreu, Frede. Op. Cit. Pág 15

Hobsbawm, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
Rego, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.