sexta-feira, 23 de maio de 2008

QI do Berimbau

QI DO BERIMBAU
Por AndréCarvalho 02 de maio de 2008
btreina@yahoo.com.br


Mesmo sendo baiano da gema, acabo de comprar uma harpa. Fi-lo porque qui-lo, como diria o inteligentíssimo mato-grossense Jânio Quadros. Foi complicado encontrar uma harpa à venda aqui, na bendita cidade do Salvador. Baiano não é muito chegado a essas coisas. As poucas existentes estão em museus e, sabe-se de uma, em casa de um professor, doutor, coordenador universitário.
Minha harpa tem quarenta e seis cordas e sete pedais e seu desenho é semelhante àquele usado nas harpas dos Caldeus, em 600 a.C.. Tive alguma dificuldade em contar todas as suas cordas. Confesso,escabreado, que me confundi umas três ou quatro vezes e que foi necessária a ajuda de um amigo, o Antônio, muito mais sagaz que eu, para a consecução da tarefa. Apesar da passagem pela Universidade Federal da Bahia, nos idos de 70, empaco em coisas que dizem respeito à aritmética. A UFBA não tem culpa alguma, pois a questão é de QI. Também pudera, acostumado ao berimbau monocórdio, não podia ser diferente.
Optei pela harpa na esperança de elevar meu QI a números estratosféricos, seguindo uma nova teoria evolucionista que vem sendo elaborada e desenvolvida por médicos aqui da Bahia. Nunca dantes se viu coisa igual. A tese é a seguinte: quanto mais cordas você tocar,mais inteligente você é. Portanto, violonista que toca violão de doze cordas é mais inteligente do que o bandolinista que toca em oito cordas, que por sua vez é mais inteligente do que o baixista que é tão inteligente quanto o cavaquinista, e assim sucessivamente.
Como você já percebeu, na base da pirâmide do intelecto estão os tocadores de berimbau.
O que me encanta nos estudos científicos é a profusão de novas e revolucionárias idéias. Claro, pesquisa serve mesmo para isso. Pena o Brasil ter que reformar apartamentos de reitores magníficos e sobrar pouco recurso para as pesquisas. Com mais dinheiro poderíamos estudar a influência da percussão no resultado dos vestibulares, por exemplo. Bum, bum, bum, bum, bum ajuda ou atrapalha o batuqueiro a ingressar na universidade? Se ajudar, o faz mais em medicina ou engenharia? Outra pesquisa interessante seria relacionar curso a instrumento musical. Para direito é melhor tocar um instrumento de sopro, clarinete, talvez. Quer sucesso nas ciências econômicas, então toque oboé, e assim por diante. Comprovadas estas hipóteses, melhorar-se-ia muito o desempenho dosalunos nos exames avaliatórios, tipo ENADE e OAB.
Apenas uma coisinha me intriga quanto ao resultado de tudo isso. É que dentre os instrumentos que conheço, o mais parecido com a harpa é o berimbau. Na verdade o berimbau é uma harpa de corda única. É uma prova de inteligência dos seus inventores; substituir quarenta e cinco cordas e sete pedais por uma cabaça, uma vareta, um caxixi e uma pedra, e tirar daí, os sons necessários para uma existência feliz é fantástico. O berimbau é mais barato, mais leve, portátil, de fácil manutenção e mercadologicamente mais demandado. Tirante eu ou outro insano qualquer, ninguém compra uma harpa e leva pra casa, mas todo o mundo compra um berimbauzinho de lembrança, não é mesmo?
Tocar berimbau não é para qualquer um. Dizem que é um dom de Deus. Extrair de uma única corda a profusão de sons que os tocadores conseguem deve ser mesmo obra dos deuses. Imagino um berimbau tocando os famosos e harmônicos temas natalinos!!! Maravilha!!! Ansioso, espero o desenrolar das novas etapas da pesquisa.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A mandinga, o Jogo de Capoeira e o Mestre de Capoeira

A MANDINGA

Existem povos que utilizam o corpo todo no processo de busca da perfeição e contato com o eterno, atravez de processos misticos/religiosos de meditação que usam a dança ao som de canticos e instrumentos para o desenvolvimento espiritual. O yoga, o Tai chi shuan, as danças e rituais afrobrasileiros são manifestações em que o individuo utiliza o corpo todo num processo de superação de limites individuais. Que permitem o autoconhecimento e o controle absoluto sobre suas potencialidades. De acordo com essa visão a mandinga é a oração corporal do afrobrasileiro, trejeitos de corpo, associados a posturas, movimentos e arquétipos. A ginga, passos balançados, giros, rodopios, mesuras, saudações e louvações. Até mesmo passos rituais de religião afrobrasileira podem fazer parte da movimentação do mandingueiro.

O JOGO DE CAPOEIRA

Ritual magico sagrado de origem afrobrasileira, tradição oral de preservação de conhecimentos ancestrais. O jogo celebra o ritual que atravez da mandinga "reza de corpo" o individuo exercita seu processo de desenvolvimento espiritual. Esse acontecimento produz um cadeia de energia positiva que se expande atravez da roda de capoeira.
A movimentação dos "cavalos" jogadores reproduzem movimentos e posturas caracteristicas, que identificam sua linhagem.
A reprodução de movimentos ancestrais executados em rituais sacroprofanos a mais de 5000 anos permitem o contato efetivo com os ancestrais por intemédio do jogo de capoeira.

O Mestre de Capoeira

Evidentemente esse processo necessita de um condutor ligado as vertentes originais para executar o processo de "aprontamento" dos jogadores atravez dos ensinamentos das mandigas proprias de sua linhagem ancestral. Esse é o Mestre de Capoeira, o guardião de sua linhagem.
O Mestre de Capoeira tem a preocupação com o desenvolvimento completo do individuo no plano fisico e espiritual. É o responsável pela transmissão oral em vivências onde a mandinga vai sendo passada para o jogador (aprendiz).
O Mestre de Capoeira é um "fazedor" de cabeças" um "aprontador" de mandingueiros e não um instrutor de ginastica, assim como o Mestre de Tai Chi Shuan não é um academico de educação fisica, o Mestre de Yoga tambem não esta vinculado a homologação academica. A Capoeira tambem não se enquadra nos conceitos de estrita pratica corporal e sua formação autentica ocorre pela tradição cultural, atravez de seus Mestres, responsáveis pela sua transmissão até o seculo 21. Formados em guetos de resistencia cultural em pelo menos 200 anos de história totalmente a margem do plano academico.

É importante sim que se estude a Capoeira na Academia (universidade) mas buscando a preservação de sua autentica expressão. Nunca pretendendo enquadra-la em conceitos pré-existentes e alheios, estranhos a sua tradição original.

Esse é meu pensamento sobre homologar o conhecimento e pratica da Capoeira por órgãos reguladores de profissões liberais.

GOLPE DE LETRA

Golpe de Letra
A Capoeira Angola na Literatura Brasileira

Paulo Andrade Magalhães Filho


Capangagem política e repressão policial: as maltas do Rio de Janeiro
No final do Século XIX, havia uma intensa perseguição à prática da capoeiragem no Rio de Janeiro. Até então, maltas de capoeiras interviam ativamente no processo político-eleitoral, dissolvendo comícios e empastelando jornais adversários. Segundo Carlos Líbano, em seu livro A Negregada Instituição (1994), a aliança entre maltas de capoeiras e os monarquistas atravessa 20 anos da vida política do país (1870-1890), culminando com a criação da Guarda Negra e desmoronando com o fim do regime. A jovem república, para a qual a ação política dos capoeiras, ligados ao mundo das ruas, era potencialmente perigosa, cria instrumentos legais de repressão aos mesmos. O Código Penal de 1890, no artigo intitulado "Dos vadios e capoeiras" criminalizava a capoeiragem e a vadiagem, prevendo como punição, inclusive, a deportação para ilhas-prisão como Fernando de Noronha.
No romance Memórias de um Sargento de Milícias (1854), Manuel Antônio de Almeida, apesar de não fazer referências explícitas à prática da capoeiragem, retrata bem o ambiente de perseguição à vadiagem, fazendo menção ao major Vidigal (Miguel Nunes Vidigal), delegado que foi um dos protagonistas históricos da repressão ao universo da capoeiragem na capital da república, ele próprio um exímio capoeirista.
Uma companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas, comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. (...)
- Então você em que se ocupa?
Nenhum deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:
- Está bom! (ALMEIDA, 1973: 18-19)
Em O Cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, este conflito de maltas aparece de maneira estigmatizada, com a rivalidade política se reafirmando através de relações quase pessoais. A leitura naturalista e racializada retrata os capoeiras como elementos marginais e instintivamente propensos ao crime. A apresentação de Firmo nos traz alguns elementos para a compreensão do fenômeno das maltas e da capangagem política:
"Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. (...) Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; militara do doze aos vinte anos em diversas maltas de capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto. Deixou nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso sua época de paixão política". (AZEVEDO, 1995: 73-74)
Naquela época diversas maltas disputavam espaço nas ruas do Rio, dentre as quais destacavam-se os "nagôas" e os "gaiamus", dos quais Aluísio talvez tenha tirado inspiração para descrever seus cabeças-de-gato e carapicus:
E os cabeças de gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares. Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam defronte deles. E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém. Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeças e os voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. (AZEVEDO, 1995: 172)
Diferente da maioria das interpretações, que enxerga as maltas como grupos marginais que agiam movidos pelo dinheiro, comandados a bel-prazer pelos grupos políticos dominantes, Líbano afirma que
o papel exercido por estes grupos era fruto de uma opção política. (...) Uma opção alimentada por uma ânsia de participação no processo político, e por uma visão política muito especial, parte de um processo de partidarização do cotidiano politizado das classes populares urbanas. (SOARES, 1994: 207-242)
A literatura desta época nos permite compreender aspectos da lógica repressiva, que encarava os capoeiras e populares como vadios e marginais, e os perseguia e punia sob o discurso de manutenção da ordem social vigente.

Racialismo e controle social na Cidade da Bahia
Na cidade de Salvador, a repressão não foi direcionada ao fenômeno da capoeiragem em si, como no Rio de Janeiro, mas foi concentrada nos terreiros de culto afro-brasileiro e nos ambientes boêmios, palcos da capoeiragem baiana. A partir do estudo sistemático de arquivos policiais do início do século passado em Salvador, Josivaldo Pires (contramestre Bel) conclui: "podemos afirmar que a repressão à capoeiragem em Salvador foi resultante da perseguição aos agentes dessa prática cultural, mas que nem sempre estes eram os vagabundos apontados pelo discurso da ordem". (OLIVEIRA, 2005: 121)
O início do Século XX foi intensamente marcado pelas teorias racistas de intelectuais como Cesare Lombroso, Arthur Gobineau e Nina Rodrigues, este pioneiro dos estudos negros na Bahia e patrono do Instituto Médico Legal - IML da Polícia Civil (que continua recolhendo principalmente negros e mulatos). De acordo com esse pensamento criminológico pseudo-científico, negros e mestiços teriam uma natural propensão ao crime, constituindo suas manifestações culturais potenciais estímulos a comportamentos bárbaros, primitivos e anti-sociais.
Em seu romance Tenda dos Milagres (1969), Jorge Amado aponta a Faculdade de Medicina como principal reduto destas teorias racialistas na Bahia, que justificavam a repressão policial ao universo da cultura afro-brasileira, inclusive com a proibição de afoxés desfilarem em alguns carnavais.
Nesses livros, e nos trabalhos de Nina Rodrigues e Oscar Freire, o estudante Pedrito Gordo, nas sobras do tempo dedicado às pensões de mulheres, aprendera que negros e mestiços possuem natural tendência ao crime agravada pelas práticas bárbaras do candomblé, das rodas de samba, da capoeira, escolas de criminalidade a aperfeiçoar quem já nascera assassino, ladrão, canalha. (AMADO, 1969: 170)
Pedrito Gordo, paralelo ficcional do delegado de polícia Dr. Pedro de Azevedo Gordilho, atuou ativamente na repressão à cultura negra na segunda década do derradeiro século, na capital baiana:
De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás, foram objeto de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a acabar com as tradições populares a porrete e a facão, a bala se preciso.
O samba de roda foi exilado para o fim do mundo, ruelas e casebres perdidos. As escolas de capoeira fecharam suas portas, quase todas. Budião passou uns tempos escondidos, Valdeloir comeu da banda podre. Com os capoeiristas, a coisa fiava mais fino, os secretas não os enfrentavam de peito aberto, tinham medo. De longe e pelas costas, era mais seguro. De vez em quando o corpo de um capoeirista aparecia crivado de balas na madrugada, tiros de tocaia, obra da malta de facínoras. (AMADO, 1969: 192)
Na releitura ficcional de Jorge Amado, os capoeiristas seriam guardiões dos terreiros, guerreiros negros e mestiços na batalha de resistência à polícia. Com seu personagem "Pedro Archanjo", exímio capoeira, boêmio das ruas e madrugadas da Bahia, iniciado no candomblé como Ojuobá, Amado faz um contraponto às teorias racialistas, a partir da ótica da democracia racial. Também faz, como em outros livros, um elogio da malandragem, da boemia, diluindo o estigma negativo ligado à vadiagem capoeirística. E cita como referência a escola de um tal Mestre Budião: "Ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos, num primeiro andar com cinco janelas abertas sôbre o Largo do Pelourinho, mestre Budião instalara sua Escola de Capoeira Angola". (AMADO, 1969: 7)
Sabemos, entretanto, que nas duas primeiras décadas do século XX, quando se passa a narrativa, não havia escolas de capoeira em Salvador, sendo o Centro Esportivo de Capoeira Angola fundado somente em 1941, por Mestre Pastinha. O CECA veio ocupar, a partir de 1955, o prédio da Ladeira do Pelourinho nº 19, exatamente ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos. A descrição que Amado faz de mestre Budião mais à frente apresenta novas evidências:
Na Escola de Capoeira, no primeiro andar vizinho à igreja, mestre Budião, sentado no banco, olhava fixo em frente, seco de pele e ossos, atento aos ruídos e sozinho. Aos oitenta e dois anos um derrame o possuíra como se não bastasse a cegueira. Mas ainda assim, nas noites de sala repleta, assumia o berimbau e puxava o canto. (AMADO, 1969: 29)
Mestre Pastinha também passou seus últimos anos cego, após um derrame, e há testemunhos de que ele continuou freqüentando as rodas, chegando por vezes a jogar nessa condição. Estes elementos nos permitem concluir ser Mestre Pastinha o inspirador direto de Mestre Budião, ambientado algumas décadas antes.
O romance também traz outros paralelos com personagens reais, como o major Damião de Souza, que não deve ser outro senão o major Cosme de Farias, rábula popular que nas palavras de Jorge Amado, "não é apenas uma individualidade marcante, um nome querido pelos pobres, um tipo curioso. Ele é muito mais que isso: é uma instituição." (AMADO, 1945: 212). Árduo defensor das classes populares, o major Cosme de Farias (que teve um bairro soteropolitano batizado em sua homenagem) foi vitorioso em milhares de causas, tendo por clientes inclusive muitos capoeiristas envolvidos em conflitos com a lei, como Bastião, Pedro Porreta, Scalvino e Chico Três Pedaços, dentre outros.

De caso de polícia a cultura nacional
A década de 1930 foi marcada por uma aceitação progressiva da capoeira enquanto fenômeno esportivo, ligado às lutas de ringue; e cultural, auxiliada por intelectuais como Edison Carneiro e Jorge Amado, ambos envolvidos na organização do 2º Congresso Afro-Brasileiro. Realizado em Salvador em Janeiro de 1937, o Congresso constituiu um importante momento de articulação sócio-política das manifestações culturais de matriz africana, abrindo caminhos para a valorização, como parte da cultura afro-baiana, do "folclore" e da identidade nacional, o que até então era caso de polícia. De acordo com Josivaldo Pires,
Podemos considerar que o uso da cultura engendrou no universo da capoeira baiana importantes mudanças, dentre elas a do comportamento social do próprio capoeira, que deixava de ser o "capadócio das ruas" para tornar-se agente cultural, o mestre da capoeira. (...) As resistências dos capoeiras encontraram nesse ambiente de mudança cultural elementos que vieram a legitimar sua prática. Esses agentes culturais vieram reclamar à capoeira o estatuto de parte da cultura afro-brasileira e impunham esta condição aos segmentos do poder da sociedade de então. (OLIVEIRA, 2005: 131)
A história da capoeira, entretanto, foi modificada radicalmente a partir da década de 30 por um capoeirista chamado Manoel dos Reis Machado, o mestre Bimba (1899-1974). Mestre Bimba não aceitava alunos que não trouxessem certificado de trabalho ou estudo, pois não queria "vadios" em sua academia. Por conta disso, chegou a ser acusado de racista. O disco "Curso de Capoeira Regional" trazia no final de seu prefácio: "mestre Bimba que criou a sua escola de 'capoeira regional' repleta de alunos de famílias da sociedade bahiana". Mestre Luiz Renato Vieira interpreta esse critério de seleção como "uma clara intenção de restringir a Capoeira Regional aos setores sociais privilegiados". E vai além: "Sem dúvida, a preocupação de Mestre Bimba com a formulação de uma capoeira eficiente, do ponto de vista do combate corporal, reflete o espírito militar que se difundiu na sociedade brasileira no período de surgimento da Capoeira Regional". (VIEIRA, 1995)
Jorge Amado, em seu livro Bahia de Todos os Santos (1945), tece fortes críticas à capoeira regional:
Há alguns anos os arraiais da capoeira, na Bahia, foram palco de uma grande e apaixonante discussão. Acontece que mestre Bimba foi ao Rio de Janeiro mostrar aos cariocas da Lapa como é que se joga capoeira. É lá aprendeu golpes de catch-as-catch-can, de jiu-jitsu, de box. Misturou tudo isso à capoeira de Angola, aquela que nasceu de uma dança dos negros, e voltou à sua cidade falando numa nova capoeira, a capoeira regional. Dez capoeiristas dos mais cotados me afirmaram, num amplo e democrático debate que travamos sobre a nova escola de mestre Bimba, que a "regional" não merece confiança e é uma deturpação da velha capoeira "angola", a única verdadeira. Um deles me afirmou mesmo que não teme absolutamente um encontro com o mestre Bimba, apesar de sua fama. Não foi outra a opinião de Edmundo Joaquim, conhecido por Bugalho, mestre de berimbau nas orquestras de capoeira, nome respeitado em se tratando de coisas relacionadas com a "brincadeira". O mesmo disseram Domingos e Rafael que mantêm na roça de Juliana uma escola de capoeira, das mais afamadas da cidade. Concorrente da que se encontra sob a competente direção de Vicente Pastinha, de quem todos afirmam ser o melhor e mais perfeito lutador de capoeira angola da Bahia. (AMADO, 1945: 212)
Percebe-se assim um claro posicionamento contra a "deturpação" da capoeira tradicional, representada pela invenção da capoeira regional. Assim como Jorge Amado, muitos intelectuais visitavam as rodas de capoeiragem da Bahia, como relata Frede Abreu:
Jorge Amado, Pierre Verger, Mário Cravo, Eunice Catunda, Alceu Maynard, Oneida Alvarenga, Odorico Tavares, Carlos Ott, Carybé e outros freqüentaram as rodas da Liberdade, sendo recebidos por Waldemar, da mesma forma diplomática a eles destinada por Bimba, Pastinha, Noronha e outros mestres. (ABREU, 2003: 43)
Nesse sentido, a intelectualidade baiana teve um importante papel na defesa da capoeira de raiz, como demonstra o firme posicionamento de Jorge Amado em suas observações. Além de antigos mestres Samuel Querido de Deus, Traíra e Najé, Jorge Amado faz um profundo elogio de Mestre Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981):
"Mestre Pastinha tem mais de setenta anos. É um mulato pequeno, de assombrosa agilidade, de resistência incomum. Quando ele começa a 'brincar', a impressão dos assistentes é que aquêle (sic) pobre velho, carapinha branca, cairá em dois minutos, derrubado pelo jovem adversário ou bem pela falta de fôlego. Mas, ah! Ledo e cego engano!, nada disso se passa. Os adversários sucedem-se, um jovem, outro jovem, mais outro jovem, discípulos ou colegas de Pastinha, e ele os vence a todos e jamais se cansa, jamais perde o fôlego, nem mesmo quando dança o 'samba de Angola'. (...)
Quem fôr à Bahia não deve perder o extraordinário espetáculo que é mestre Pastinha no meio do salão jogando a capoeira, ao som do berimbau. E quando ele (sic) não está lutando, não vai descansar. Toma de um berimbau, puxa as cantigas. Para mim, Pastinha é uma das grandes figuras da vida popular da Bahia. É indispensável conhecê-lo, conversar com ele, ouvi-lo contar suas histórias, mas, sobretudo, vê-lo na 'brincadeira', atingindo adversários". (AMADO, 1945: 211)
Apesar de Mestre Bimba ter sido o primeiro a fundar oficialmente uma academia de capoeira (1937), Mestre Pastinha foi o primeiro a fundar uma escola de capoeira (Centro Esportivo de Capoeira Angola, 1941), a pensar na capoeira como um instrumento pedagógico, de alto teor filosófico, e é isso que transparece em seus manuscritos. Sua escolha pela comunidade da capoeira tradicional, que resistia à proliferação da capoeira moderna, da moda, a luta regional baiana, não foi apenas pelo seu conhecimento técnico e domínio corporal. Como Mestre Pastinha conta, ele estava afastado há quase 30 anos da prática sistemática e cotidiana da capoeiragem. A sua escolha para "mestrar" a capoeira tradicional baiana, que passou então a ser chamada de capoeira angola, foi pelo seu grau de mestria, pelo seu alto conhecimento espiritual e filosófico, pelo seu caráter de educador. E é assim que ele mesmo se define: "É o educador da capoeira tipo Angola originado pelos negros da velha África". (PASTINHA, 90)

Baianidade, cultura afro e democracia racial
A partir da revalorização da cultura brasileira promovida pelos modernistas de 1922 e do elogio da mestiçagem feito por Gilberto Freyre (1933), começa a se construir uma ideal de baianidade. Essa "idéia de Bahia" (Pinho, 1998) transparece em canções de Dorival Caymmi (como em O Que É Que a Baiana Tem?, de 1938, eternizada por Carmem Miranda) e outros artistas. Em 1944 Geraldo Pereira compõe Falsa Baiana, que reforça o mito da mulher sensual, cantando que "Baiana é aquela que entra no samba de qualquer maneira, que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras, deixando a moçada com água na boca". A política de boa vizinhança desenvolvida pelos EUA a partir da década de 40 cria o personagem Zé Carioca, um papagaio cheio de ginga, preguiçoso, folgado, "trambiqueiro" e paquerador. É o típico malandro tropical clichê, decorado com as cores da bandeira do Brasil no corpo e as da bandeira dos Estados Unidos nas penas do rabo. Em 1942 Walt Disney lança Alô amigos e em 1945 Você já foi à Bahia? (Os três cavaleiros), simbolizando a aliança entre Estados Unidos, México e Brasil, que unidos à causa dos Aliados, lutavam na Segunda Guerra Mundial. Cria-se então uma ideologia da baianidade como uma forma cultural específica, em que o racismo é dissolvido pela doçura das relações sociais, o povo é alegre e festivo, as mulheres (especialmente as mulatas) quentes e sensuais. De acordo com Osmundo Pinho,
A "cultura baiana" não é, assim, o resultado natural de décadas de desaquecimento econômico e isolamento cultural, como advoga o poeta e ensaísta Antonio Risério (1988), um de seus publicistas, mas é, na verdade, um aparelho de interpretação e definição de uma realidade social cruel e violenta, magicamente transformada em festiva e auto-emulativa. Ao invés de um objeto natural e resultante da expressão espontânea de uma população considerada, o modelo de "cultura baiana", como um repertório de traços mais ou menos arbitrários, é um objeto discursivo construído e reposto como argamassa ideológica para a Bahia como comunidade imaginada e como "dissolvente" simbólico de contradições raciais, de modo a concorrer para a construção do consenso político (hegemonia), base para a dominação. (PINHO, 1998)
Conclusão
No dia 29 de Abril de 2008, as baixas notas obtidas pelos cursos de medicina da Bahia no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) motivaram uma série de declarações polêmicas do Coordenador de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Prof. Dr. Antônio Natalino Manta Dantas. Segundo Antônio, que aos 69 anos é o mais antigo professor em atividade na Faculdade de Medicina (há 42 anos no corpo docente), "a cultura baiana é muito primitiva", e "o baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais, não conseguiria"[1][1]. De acordo com ele,
O berimbau é o tipo do instrumento do individuo que tem poucos neurônios, porque tem uma corda só e não precisa de muita celebração pra combinar sons musicais.(...). Só sai aquele barulho: pu pu pu, pu pu pu, pu pu pu. Isso por acaso indica uma qualidade intelectual muito elevada? Não.[2][2]
As declarações do prof. Antônio Natalino demonstram a atualidade do pensamento racialista, profundamente incrustado nas classes dominantes brasileiras. O elogio da imigração como fator determinante para o desenvolvimento do sudeste mostra claramente o caráter étnico-racial de suas concepções:
o baiano (...) talvez tenha déficit em relação a outras populações. Não temos aquele desenvolvimento que poderíamos ter. Se comparados com os estados do Sul, vemos que a imigração japonesa, italiana e alemã foram excelentes para o país. Aqui ficamos estagnados. [3][3]
O caricatural prof. Nilo Argolo, personagem racista de Tenda dos Milagres, continua presente em cátedras e espaços privilegiados de poder, atuando apenas de maneira mais camuflada. A polícia baiana, que vem sendo acusada por movimentos sociais de promover uma verdadeira política de extermínio em favelas e periferias, ainda age de acordo com uma lógica lombrosiana, elencando negros e mulatos pobres como criminosos em potencial e promovendo uma violenta "higienização social", à semelhança da "tropa de elite". A idéia de "baianidade" ajuda a formatar Salvador e a cultura afro-brasileira como produtos de consumo, um universo mítico a ser apreendido pela indústria do turismo, mas não altera profundamente as relações sociais de poder na sociedade baiana. A homenagem feita à capoeira como tema do carnaval de 2008 foi simbólica, uma vez que a maioria dos capoeiristas continuaram confinados no seu lugar social, fora das cordas ou segurando-as para que a burguesia celebre a fantástica democracia racial baiana. A literatura brasileira tem representando a capoeira ora como uma prática vadia, ora como um espaço de conciliação, não conseguindo entretanto expressar sua riqueza como instrumento de resistência e luta popular contra as diferentes estratégias do poder.

[1][1] Retirada de matéria encontrada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u397281.shtml
[2][2] Entrevista em áudio, retirada de http://educacao.uol.com.br/ultnot/2008/04/30/ult105u6467.jhtm
[3][3] Entrevista em áudio, retirada de http://educacao.uol.com.br/ultnot/2008/04/30/ult105u6467.jhtm


Referências:
Abreu, Frederico José de. O Barracão do Mestre Waldemar. Salvador: Zarabatana, 2003.
Almeida, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Ática, 1973
Amado, Jorge. Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Martins, 1945.
Amado, Jorge. Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins, 1969.
Azevedo, Aluísio de. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1995.
Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Schimidt, 1933.
Hobsbawn, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
Oliveira, Josivaldo Pires de. No tempo dos Valentes: Os capoeiras da cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005.
Pastinha, Vicente Ferreira: Capoeira Angola. Salvador, 1964.
Pastinha, Vicente Ferreira: Manuscritos de Mestre Pastinha. Salvador, Coleção São Salomão.
Pinho, Osmundo S. de Araújo. "A Bahia no Fundamental": Notas para uma Interpretação do Discurso Ideológico da Baianidade. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, nº 36, 1998.
Rego, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
Soares, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição: Capoeiras no Rio de Janeiro (1850-1890). Rio de Janeiro, 1994.
Vieira, Luiz Renato. O Jogo da Capoeira: Cultura Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.